É comum que cinebiografias caiam no marasmo do formato pré-estabelecido para contar a trajetória de figuras populares. Mas, pela inventividade da direção ou a força nas atuações, é possível se destacar mesmo seguindo essa cartilha das biografias. Assim, “Homem com H” é a maior representação de como se faz uma cinebiografia, transportando Ney Matogrosso por inteiro para as telas.
Aos 83 anos e ainda em atividade, Ney de Souza Pereira, o Ney Matogrosso, ganhou o filme de sua vida, com a direção de Esmir Filho (“Boca a Boca”) e a atuação de Jesuíta Barbosa (“Pantanal”), que, de maneira quase sobrenatural, encarna os trejeitos e a aura de Ney.
A produção não tem foco somente em sua vida artística, passando por sua infância e pelos seus momentos de maior intimidade, tanto os mais carnais quanto suas amizades e família. Pulando entre fases em um formato quase que episódico, nos mostra como Ney sempre resistiu aos acontecimentos de sua vida, seja sua saída de casa, começo artístico, embate com a ditadura ou o trágico romance com seus amores.
Embate ao autoritarismo
Um ponto recorrente durante toda a narrativa são os embates com o autoritarismo, seja a figura qual for. A princípio, sendo o pai (Rômulo Braga, de Carvão), militar, rígido com a família e proibitivo com o filho a ponto de o fazer sair de casa para provar sua independência. Em uma relação que parece estereotipada no começo, mas que ganha camadas com a atuação de Rômulo, em sua resistência ao filho sendo quebrada.
Como a figura caricata que sempre foi, o personagem Ney Matogrosso, com suas pinturas no rosto e roupas provocantes, não atiçava somente o público, mas também a censura da ditadura militar. Ouso dizer que essa é a parte mais instigante do longa, com o molejo para contornar a censura em suas performances, escancarando as limitações impostas.
A luta contra a ordem, contra a figura de poder, não veio somente em casa ou nos palcos. Sua personalidade livre discutia com todos que lhe impunham limitações, e a atuação de Jesuíta Barbosa não só nos remete a uma selvageria hipnotizante como também à compaixão de um Ney amoroso.
Jesuíta e Ney, um só
Muito se fala do compromisso para entregar a atuação em uma biografia, mas poucas vezes é realmente possível ser impactado por ela, sentir que o que você está vendo não é o ator, e sim uma força da natureza. O que Jesuíta Barbosa faz ao ser Ney é hipnotizante; o olhar penetrante e seus trejeitos elevam a produção a outro patamar.
Seja transmitindo revolta ou amor, conseguimos acreditar fielmente em tudo que está envolvido ali, as cenas de sexo, com tamanho desejo, soam tão poéticas quanto a voz em suas músicas. Que apesar de Jesuíta não cantá-las, foi feita a dublagem pelo próprio Ney em cima da voz do ator. Então, realmente vemos o esforço e acreditamos que sua voz é tão parecida quanto.
O que você pode pensar que não faria diferença, mas basta lembrar da fatídica performance de Rami Malek como Freddie Mercury para recordar a perda de impacto que isso poderia ter.
Amores e Dor
A relação de Cazuza (Jullio Reis) com Ney é abordada em alguns momentos dessa produção. Sua primeira aproximação se revela tão quente e apaixonante que queima ambos. Com problemas com drogas, Jullio entrega um Cazuza, a princípio, problemático e instável a ponto de afastar quem queria tanto estar ao seu lado.
Em um segundo momento, temos a relação de Matogrosso com Marco de Maria (Bruno Montaleone), a quem criou uma relação por maior parte do tempo. Onde temos uma ação simples, porém apaixonante,um amor de compreensão e companheirismo. Que, com um certo tempo, abraça Cazuza novamente, se tornando um trisal que, em si, foi pouquíssimo abordado nessa junção, talvez por questão de respeito, já que o que se seguiu foram momentos difíceis.
A recepção de Ney com o diagnóstico positivo para AIDS de ambos pesa em dobro, não só por serem duas despedidas, mas porque vemos o carinho e o afeto proporcionado por Jesuíta, Jullio e Bruno, a tristeza e a melancolia no olhar de quem sabia o que o diagnóstico positivo significava.
A voz que atravessa o tempo
Como biografia de um músico, o que não faltou na produção foram canções popularizadas por sua voz. Ao todo, são tocadas 17 músicas durante o longa, isso, claramente, impacta na duração, com suas mais de 2h.
Mas a escolha a dedo das canções complementa ativamente cada cena em que ressoam, o que só exalta ainda mais o trabalho de Esmir Filho, não só em dirigir toda essa ambientação como na sensibilidade da escolha da letra e sonoridade que conversassem com a narrativa.
Narrativa essa que é finalizada de maneira magistral com a gravação real do próprio Ney Matogrosso, em carne e osso, performando para um estádio lotado e mostrando que seu magnetismo persiste até hoje.
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